Supremo começa a julgar ação sobre demarcação de terras indígenas

Supremo começa a julgar ação sobre demarcação de terras indígenas

Brasil
Joaquim
11 de junho de 2021
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Um julgamento de grande relevância para o futuro das demarcações de terras indígenas está marcado para começar nesta sexta-feira (11) no STF (Supremo Tribunal Federal).

Apesar da importância do tema e de não haver jurisprudência consolidada da corte sobre a questão, ele será julgado em plenário virtual, o que significa que não haverá debate entre os ministros, que devem incluir seus votos no sistema até o próximo dia 18.

Entre os pontos que serão discutidos no julgamento estão os conceitos de terra tradicionalmente ocupada por indígenas e a tese do marco temporal, que não está prevista na Constituição e que, na prática, trava demarcações.

O caso concreto que será discutido se refere a um recurso extraordinário em uma ação de reintegração de posse movida contra o povo indígena xokleng, em Santa Catarina.
O processo esteve na pauta no ano passado, mas foi adiado pelo presidente da corte, ministro Luiz Fux, que não o incluiu no calendário deste semestre do plenário físico –onde há debate, ainda que por videoconferência.

O que diz a Constituição?

A Constituição Federal de 1988 diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Também estabelece que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Além disso, determina que tais terras são inalienáveis e indisponíveis, ou seja, não podem ser vendidas ou cedidas, e que os direitos sobre elas são imprescritíveis, ou seja, não caducam ou prescrevem.

Como funciona a demarcação?

Em linhas gerais, um dos primeiros passos da demarcação de terras indígenas constitui a realização de um estudo técnico com produção de relatório antropológico, que identifica e delimita a área a ser demarcada. Essa etapa fica a cargo da Funai (Fundação Nacional do Índio).

A fase seguinte é feita pelo Ministério da Justiça, por meio da publicação de uma portaria declaratória. A demarcação é então homologada pela Presidência da República por decreto.

O que é a tese do marco temporal?

Segundo tal tese jurídica, defendida por ruralistas, os indígenas que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição – não teriam mais direito sobre elas, ainda que existam pareceres antropológicos demonstrando que elas pertenceram a seus antepassados.

A tese é criticada por advogados especializados em direitos dos povos indígenas, pois acabaria por validar e legalizar invasões e violências cometidas contra indígenas anteriormente à Constituição de 1988.

Parte desses ataques ocorreu no passado recente e foram cometidos pelo próprio Estado, tendo sido documentados pela Comissão Nacional da Verdade, que analisou violações cometidas no período de 1946 a 1988.

Os relatórios apontam que, além das invasões propriamente ditas, ocorriam também arrendamentos de terras que não obedeciam às condições acordadas, ocupando assim terras pertencentes a indígenas e que ainda assim eram posteriormente legalizados pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), órgão antecessor da Funai.

Também constam entre as violações sofridas no período trabalho forçado, cárcere privado, tortura, remoções forçadas e assassinatos de indígenas.

Haveria exceções ao marco temporal?

Entre os que defendem a tese, exceções ao marco temporal seriam casos em que se ficasse comprovado que os indígenas não estavam no local em 1988 porque haviam sido expulsos.

Segundo a tese do “esbulho renitente”, por exemplo, seria preciso que os indígenas comprovassem que, na data da promulgação da Constituição, havia disputa física ou judicial pela posse da terra. No entanto, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pela Funai, ou seja, eles não poderiam entrar com uma ação na Justiça por iniciativa própria.

O conceito do marco temporal consta na Constituição?

Não, a Constituição não traz o conceito de marco temporal. Em parecer, o constitucionalista e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP José Afonso da Silva sustentou que o marco temporal é inconstitucional.
“Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão”, escreve no documento.

O que defendem os povos indígenas?

Eles defendem a tese do indigenato, sendo o direito dos povos indígenas a suas terras originário e, portanto, anterior ao próprio Estado brasileiro. Com isso, ele não é um direito concedido, mas sim reconhecido pela Constituição.

Outro aspecto apontado é que a Carta não inovou ao reconhecer o direito de posse da terra dos indígenas. Ele já constava na Constituição de 1934 e em legislações do período colonial, como em um alvará de 1680.

Como a tese do marco temporal tem sido utilizada?

Diferentes ações judiciais pelo país buscam anular processos de demarcação de terras indígenas com base no marco temporal.

Além disso, um parecer elaborado pela AGU (Advocacia-Geral da União) na gestão do presidente Michel Temer determinou a adoção da tese pela administração pública federal. O parecer afirma que as demarcações devem observar as condicionantes fixadas na decisão do STF no caso Raposa Serra do Sol.

O parecer foi usado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, em 2019, para devolver à Funai 17 processos de demarcação. À época, em nota, a pasta afirmou que a devolução foi feita para que fosse avaliado o cumprimento do parecer nos processos.

Também o projeto de lei 490, que está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, busca, entre outras medidas, instituir a tese do marco temporal como parâmetro de terra tradicionalmente ocupada.

De acordo com Juliana de Paula Batista, que é advogada do ISA (Instituto Socioambiental), por se fundamentar na existência de uma jurisprudência consolidada sobre o marco temporal no Supremo, a própria motivação do parecer da AGU é equivocada.

“Se tem repercussão geral [nesta ação] para discutir o marco temporal, é porque não tem jurisprudência consolidada. A repercussão geral é um instrumento de unificação de jurisprudência”, diz.

Na ação, o ISA atua como amicus curiae (amiga da corte), que são chamados para opinar sobre a causa julgada.

Já a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), que também é amicus curiae no processo, defendeu, em sustentação oral, que o parecer é “crucial para o gestor público ter clareza e segurança sobre o que é ou não uma terra tradicionalmente ocupada por índios”.

Por que este julgamento é importante?

Como o processo teve repercussão geral reconhecida pela corte, o julgamento ganha relevância nacional. Isso porque a decisão deste caso, que se debruçará sobre o conceito trazido na Constituição, de terra tradicionalmente ocupada por indígenas, deverá ser seguida pelos demais tribunais do país e nos processos demarcatórios realizados pelo governo.

Em maio de 2020, o ministro do STF Edson Fachin, que é relator do caso, suspendeu os efeitos do parecer da AGU até que haja decisão do tribunal sobre o tema.

Além disso, atendendo a um pedido formulado por comunidades indígenas, também determinou a suspensão nacional dos processos judiciais que tratam de demarcação de áreas indígenas — como em casos de despejo e ação de reintegração de posse — até o fim da pandemia da Covid-19 ou até a conclusão do julgamento.

Desde que o presidente Jair Bolsonaro tomou posse, nenhuma terra indígena foi demarcada.

O que impulsionou a discussão acerca do marco temporal?

No julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, além do marco temporal, que foi citado em um dos votos do julgamento, o Supremo elencou 19 salvaguardas institucionais, que funcionariam como condições para definir as demarcações.

Em 2013, no entanto, o próprio tribunal definiu que a decisão relativa à Raposa Serra do Sol, apesar de ter a força de uma decisão do Supremo, não era vinculante e que seus parâmetros se referiam apenas àquele caso e não a todas as demarcações.

Depois do julgamento da Raposa Serra do Sol, o marco temporal já foi utilizado em decisões da Segunda Turma do STF. Há, no entanto, uma divisão entre os ministros do Supremo sobre o tema, e a tese não foi alvo do plenário. Espera-se que, com o julgamento, o tema tenha uma definição.

Sobre o tópico, o ministro da Segunda Turma Gilmar Mendes, defensor da tese, afirmou: “Importante foi a reafirmação de marcos do processo demarcatório, a começar pelo marco temporal da ocupação. O objetivo principal dessa delimitação foi procurar dar fim a disputas infindáveis sobre terras, entre índios e fazendeiros, muitas das quais, como sabemos, bastante violentas”.

O que são as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol?

Uma das mais polêmicas veda a ampliação de terras já demarcadas.

Em seu parecer, o professor José Afonso defende que o STF extrapolou seus limites na decisão, introduzindo condições que a Constituição não autoriza. Ele ressalta que o direito originário dos indígenas é imprescritível e defende que, sempre que a demarcação cobrir limites inferiores a terras sobre as quais têm direitos originários, os indígenas podem pedir correção.

O professor de direito da FGV Oscar Vilhena também entende que parte das salvaguardas são inconstitucionais. Segundo ele, por ser um direito originário, quando o Supremo cria obstáculos, está infringindo a Constituição.

Vilhena acredita que o fato de que, nas ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade), a lei permita ao STF calibrar sua decisão – podendo determinar, por exemplo, quando ela entra em vigor – acaba fazendo com que a corte se sinta à vontade para criar salvaguardas, como no caso Raposa Serra do Sol.

“No entanto, ele pode fazer desde que essas salvaguardas não infrinjam a Constituição. E, neste caso específico, que fala sobre a não expansão, ele está infringindo a Constituição”, diz.

Qual o caso concreto em discussão no recurso?

O julgamento se refere a um recurso da Funai contra uma decisão do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), que, em uma ação de reintegração de posse, decidiu favoravelmente ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (antiga Fundação Meio Ambiente – Fatma) contra o povo indígena xokleng.

O que alegou o instituto no pedido de reintegração de posse? A ação proposta alega que os indígenas teriam invadido, em janeiro de 2009, a Reserva Biológica de Sassafrás, localizada no município de Itaiópolis (SC). Eles argumentam que a propriedade pertence ao instituto com base em escritura pública lavrada e matriculada em cartório imobiliário.

O que alega o povo indígena xokleng?

Defende que a área alvo da ação de reintegração de posse faz parte de território que, segundo a portaria declaratória do Ministério da Justiça 1182/2003, faz parte da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ a que o povo xokleng tem direito de posse.

A demarcação, no entanto, ainda não foi concluída. Há uma outra ação em curso, também no STF pedindo a anulação dessa portaria. Entre os argumentos alegados estão não só o marco temporal, como também a condicionante de que, uma vez demarcada, a terra indígena não poderia sofrer ampliação.

De acordo com Rafael Modesto, advogado do povo xokleng, a terra de fato já tinha sido demarcada no início do século 20.

Entretanto, a Funai criou um novo grupo técnico após reivindicações dos xokleng de que a área a que tinham direito foi sendo reduzida ao longo do tempo por invasões e até por desanexação promovida com intermédio do SPI.

Um estudo antropológico identificou que a área de ocupação tradicional deveria ser ampliada de 14 para 37 hectares.

 

 

 

Folha Press

Joaquim Franklin

Joaquim Franklin

Formado em jornalismo pelas Faculdades Integradas de Patos-PB (FIP) e radialista na Escola Técnica de Sousa-PB pelo Sindicato dos Radialistas da Paraíba.

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